A Fragilidade da delação de Mauro Cid e a Urgência de sua Anulação
*Temístocles Telmo Ferreira Araújo
A delação premiada firmada por Mauro Cid suscita sérias dúvidas quanto à sua validade jurídica, sua veracidade e sua utilidade dentro de um sistema de justiça que deve ser regido pelo devido processo legal, pelo contraditório e pela produção de provas concretas. Trata-se de um militar que jurou defender a pátria com o sacrifício da própria vida e que exerceu a função de ajudante de ordens da Presidência da República — uma das posições de maior confiança no núcleo do poder republicano. É absolutamente incongruente que alguém com tal grau de responsabilidade alegue, em tão curto intervalo de tempo, não se recordar de onde recebeu uma suposta sacola de vinho que poderia conter dinheiro, baseando tal afirmação apenas em uma dedução subjetiva sobre o peso do objeto. Ainda mais quando a tal entrega foi supostamente passado a ele por um General de Exército 4 estrelas, a mais alta patente do Exército Brasileiro e por um candidato a vice-presidente da República.
Não há indícios materiais, perícias ou provas mínimas que sustentem essa narrativa. Trata-se de uma declaração frágil, marcada por lacunas e suposições, que não se sustentam diante do padrão mínimo de legalidade exigido em um Estado de Direito. O ordenamento jurídico brasileiro, por meio do art. 155 do Código de Processo Penal (CPP), é claro ao estabelecer que “o juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação”. Ou seja, delações não corroboradas por provas autônomas não bastam para fundamentar acusações ou condenações.
Além disso, o art. 239 do CPP define que “considera-se indício a circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias”. A simples alegação de que o peso da sacola fazia parecer que havia dinheiro em seu interior não atende a esse critério — não se trata de um indício concreto, mas de uma inferência subjetiva sem base probatória.
Diante disso, impõe-se a urgente anulação dessa delação. Sua manutenção fere os princípios constitucionais previstos no art. 5º, incisos LIV e LV da Constituição Federal, que garantem, respectivamente, “o devido processo legal” e “o contraditório e a ampla defesa”. Mais que isso: configura-se uma possível prova ilícita, nos termos do art. 5º, inciso LVI da CF, segundo o qual “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”. Bem como se impõe no art. 157. São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais. § 1o São também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras. § 2o Considera-se fonte independente aquela que por si só, seguindo os trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal, seria capaz de conduzir ao fato objeto da prova.
Neste contexto, aplica-se a chamada teoria dos frutos da árvore envenenada (do inglês, fruit of the poisonous tree), segundo a qual todas as provas obtidas a partir de uma fonte ilícita ou viciada são igualmente inválidas e devem ser desentranhadas do processo. Assim, todos os elementos derivados da delação de Mauro Cid — depoimentos, diligências, quebras de sigilo, entre outros — também deveriam ser afastados, por contaminação de origem.
A própria Lei nº 12.850/2013, que regulamenta a colaboração premiada, em seu art. 4º, §16, estabelece que “nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações de agente colaborador”, reiterando que a delação deve vir acompanhada de provas efetivas e independentes. Ainda, o §1º desse mesmo artigo determina que os benefícios concedidos ao colaborador devem ser proporcionais à eficácia de sua colaboração, o que, neste caso, se mostra duvidoso diante da ausência de corroboração probatória.
É fundamental lembrar também que, quando há contradições entre a versão do delator e a dos demais envolvidos, o próprio CPP prevê, no art. 229, o mecanismo da acareação, que deve ser conduzida em juízo, com contraditório e registro formal, para esclarecer divergências. Tal diligência, quando negligenciada, compromete ainda mais a validade do que foi declarado.
Neste caso em particular, em que a publicidade até das diligências do inquérito policial, que sabemos tem como característica ser sigiloso, decidiu o magistrado, que não seriam estes atos abertos ao público.
Moraes proíbe gravar acareações, e advogados relatam tom jocoso de ministro do STF: "A defesa precisa registrar que teve sua prerrogativa violada. Todos os atos deste processo foram gravados, e a opinião pública teve acesso. Nesse caso, que é um ato processual fundamental para pegar os detalhes da fala de cada um, infelizmente —respeitando, evidentemente, o ministro-relator— esta defesa pediu que o ato fosse gravado e foi negado", disse. Quatro advogados que participaram da audiência informaram à Folha que, ao negar o pedido, Moraes fez um comentário em tom jocoso com a defesa de Braga Netto.
Para o professor de direito processual penal Gustavo Badaró, da Faculdade de Direito da USP, a acareação é um "prolongamento do interrogatório" dos réus. Por esse motivo, deve-se privilegiar a gravação da audiência. (FEITOSA, 2025)
Infelizmente, por conveniências políticas, institucionais ou até por mero apego a narrativas, há uma tendência de preservar a delação, mesmo diante da ausência de respaldo técnico e jurídico. É mais fácil sustentar uma acusação frágil do que reconhecer a nulidade de um instrumento que jamais deveria ter sido homologado nos moldes em que foi.
A Justiça não pode se prestar ao papel de sustentáculo de versões não comprovadas. O instituto da colaboração premiada é um mecanismo legítimo, mas sua banalização o transforma em instrumento político e compromete sua finalidade. É imperativo que se restabeleça a seriedade do processo penal, com provas reais, responsabilidade jurídica e respeito às garantias fundamentais.
A anulação da delação de Mauro Cid não é uma questão de conveniência, ideológica ou partidária — é uma exigência da legalidade constitucional, da técnica processual e da integridade das instituições democráticas.
Referências:
FEITOSA, CÉZAR. 2025. Moraes proíbe gravar acareações, e advogados relatam tom jocoso de ministro do STF. Moraes proíbe gravar acareações, e advogados relatam tom jocoso de ministro do STF. [Online] FOLHA DE SÃO PAULO, 24 de junho de 2025. [Citado em: 25 de junho de 2025.] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2025/06/moraes-e-alvo-de-questionamentos-apos-veto-a-gravar-acareacao-alegando-risco-de-vazamento.shtml.
*É Coronel veterano da Polícia Militar do Estado de São Paulo, com 38 anos de atuação na área de Segurança Pública. Doutor em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública, é também pós-graduado em Direito Penal e atualmente é Secretário de Segurança Cidadã de Santo André
Advogado licenciado, atua como membro consultor da Comissão de Segurança Pública da 100ª Subseção da OAB/SP – Ipiranga. É professor universitário há 17 anos na área de Direito Criminal, com atuação na PUC-Centro Universitário Assunção São Paulo, no Programa de Doutorado da Polícia Militar do Estado de São Paulo e na pós-graduação da Faculdade Legale.
Em 2023, coordenou os Conselhos Comunitários de Segurança da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo. É autor, coautor e organizador de 14 livros, com destaque para Vizinhança Solidária. Além de escritor e articulista, também se dedica à poesia.
@temistocles_telmo
Infelizmente não sei onde isso vai parar, eu já com 55 anos, fazendo uma faculdade de Direito e vendo muitas direitos constitucional e direitos civil e penal ser ignorado ou interpretado conforme o intendimento de um Mistério ou de um Ministro, e nada se faz ou finge que faz . O que será da s futuras gerações, os livros de diretos e história serão alterados, com essas decisões .
ResponderExcluirObrigado por suas considerações Marcelino. Vivemos momentos difíceis e estranhos
ExcluirA interpretação da lei envolve a análise justa e coerente de forma humana, mas presenciamos que a lei é aplicada e interpretada de acordo com o interesse humano.. abraços Mestre
ExcluirA constituição tem que ser defendida a todo custo, inclusive por suas orientações normativas, quando a população enxerga o que está ocorrendo hoje, entende que regras, valores e princípios são quebrados.
ResponderExcluirEssa delação é o oposto dos direitos e garantias.
Parabéns Prof°, seus artigos são precisos e de ótima qualidade.
Obrigado Leide por suas considerações...vamos em frente na busca da disseminação do conhecimento...
ResponderExcluir