Análise crítica dos interrogatórios à luz do Código de Processo Penal: violações formais e sistêmicas

 


O Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu nesta terça-feira, 10 de junho de 2025, os interrogatórios dos oito réus apontados como integrantes do núcleo central da pretensa tentativa de golpe de Estado após as eleições de 2022: Jair Bolsonaro (ex-presidente); Mauro Cid (ex-ajudante de ordens e delator); Alexandre Ramagem (deputado e ex-diretor da Abin); Anderson Torres (ex-ministro da Justiça); Augusto Heleno (ex-ministro do GSI); Almir Garnier (ex-comandante da Marinha); Walter Braga Netto (ex-ministro e candidato a vice); Paulo Sérgio Nogueira (ex-ministro da Defesa).

Os depoimentos fazem parte da ação penal que investiga uma articulação para manter Jair Bolsonaro no poder, mesmo após a derrota para Luiz Inácio Lula da Silva.

É sem dúvidas o caso processual penal de maior repercussão na história recente da República, já que envolve um ex-presidente, que foi derrotado numa eleição por uma diferença muito pequena. Foram 49,10% dos votos válidos, o que equivale a 58.206.354 eleitores. Considerando que o atual presidente teve 50,90% dos votos válidos em 60.345.999 de eleitores.

Sem entrar no mérito político do processo e procurando apenas olhar o Princípio do Devido Processo Legal na fase do interrogatório, até mesmo porque temos discussões na competência, uma vez que nenhum dos réus tem foro privilegiado e impedimento do julgador, considerando que o magistrado relator, figura em parte do processo como vítima. O interrogatório dos réus perante o Supremo Tribunal Federal (STF) gerou intenso debate entre juristas, em razão de potenciais afrontas a dispositivos expressos do Código de Processo Penal (CPP), bem como aos princípios estruturantes do sistema acusatório.

Por isso analisamos quatro pontos centrais, com base nos dispositivos legais pertinentes e na interpretação doutrinária predominante.

 

1) Interrogatório conjunto dos réus — Violação ao art. 191 do CPP

O artigo 191 do CPP dispõe claramente: “Havendo mais de um acusado, serão interrogados separadamente.”

A separação dos interrogatórios visa preservar a autenticidade e espontaneidade das declarações, evitando que o conteúdo de um interrogatório influencie os demais. O interrogatório conjunto, portanto, configura violação expressa à norma legal e aos princípios do contraditório e da ampla defesa, considerando, que o interrogatório, no conjunto probatório é meio de defesa e não mais de prova. Neste caso, comprometendo a busca pela verdade real e a efetiva garantia da defesa individual.

 

2) Desrespeito ao artigo 212 do CPP — Intermediação indevida do juiz

O artigo 212 do CPP, alterado pela Lei 11.690/2008, estabelece:

Art. 212.  As perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida.

Parágrafo único.  Sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição

Ainda que voltado expressamente à oitiva de testemunhas, a jurisprudência e a doutrina vêm estendendo tal regra, com as devidas adaptações, ao interrogatório dos réus, sob o argumento de que o sistema acusatório não admite atuação protagonista do magistrado na produção probatória.

E no caso em tela, durante os interrogatórios, as perguntas das partes foram direcionadas ao juiz (ou ministro), que então as retransmitia aos réus, o que representa um retrocesso anterior à reforma de 2008 e um desrespeito à paridade de armas processual, já que por regra processual, as perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não se admitindo que sejam feitas por intermédio do juiz.

 

3) O corréu delator deveria ter sido ouvido separadamente — Direito do colaborador

Conforme a jurisprudência do STF e STJ, o corréu colaborador deve ser interrogado antes dos demais réus, e sem a presença destes, a fim de evitar constrangimentos e proteger a integridade do conteúdo de sua colaboração. Embora não se trate de norma expressa no CPP, trata-se de garantia derivada do direito à não autoincriminação e da proteção do colaborador.

Trata-se de direito disponível, ou seja, o delator pode renunciar a ele. Todavia, se não foi oportunizado o exercício desse direito — de ser ouvido em separado —, há grave violação à sua condição de colaborador premiado e potencial nulidade processual.

4) Protagonismo indevido do magistrado — Violação ao art. 3º-A do CPP

O art. 3º-A do CPP, incluído pela Lei 13.964/2019 (Pacote Anticrime), consagra expressamente a lógica do sistema acusatório: Art. 3º-A. O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.

Assim, o juiz não pode assumir papel de condutor principal do interrogatório, tampouco formular perguntas que desbordem do papel de esclarecimento residual. O protagonismo judicial no interrogatório compromete a imparcialidade exigida do julgador e desnatura o rito processual.

 

Conclusão

A condução dos interrogatórios em desacordo com os artigos 191 e 212 do CPP, bem como a postura ativa do magistrado e a ausência de resguardo ao direito do corréu colaborador, representam falhas processuais graves. Não se trata de mero preciosismo formal, mas de garantias estruturais do devido processo legal e da imparcialidade judicial, pilares do Estado Democrático de Direito.

É de se destacar também, que a ausência de inconformismo por parte das defesas deve ser objeto de reflexão, pois é papel dos advogados zelar não apenas pelos interesses imediatos de seus clientes, mas pela integridade do processo penal como um todo.

 

https://www.jusbrasil.com.br/artigos/analise-critica-dos-interrogatorios-a-luz-do-codigo-de-processo-penal-violacoes-formais-e-sistemicas/4038824732

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