O STF e a Desconfiguração dos Limites Constitucionais – Ativismo Judicial e o Fim do Marco Civil da Internet

                                                                                                             *Temístocles Telmo Ferreira Araújo

Em 26 de junho de 2025, o Supremo Tribunal Federal decidiu, por maioria de votos, pela parcial inconstitucionalidade do artigo 19 da Lei nº 12.965/2014, o Marco Civil da Internet. A decisão representa um divisor de águas no ordenamento jurídico brasileiro, não apenas pelo conteúdo julgado, mas sobretudo pela forma como o STF assumiu, sem pudor, um papel de protagonismo legislativo, contrariando os princípios da separação dos poderes instituídos por Montesquieu, que são a base das democracias ocidentais modernas.

O artigo 19 do Marco Civil da Internet estabelecia:

Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e evitar a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente.

Com a decisão do STF, esse dispositivo foi reinterpretado para permitir que plataformas digitais sejam responsabilizadas por conteúdos de terceiros mesmo sem ordem judicial, bastando notificações extrajudiciais, o que rompe frontalmente com a estrutura garantista da legislação original, transformando o ambiente digital em um espaço de vigilância compulsória e passível de sanções sem o devido processo legal.

Violação da Separação dos Poderes

O Supremo, ao reescrever norma aprovada pelo Congresso Nacional, exorbita sua função típica (jurisdicional) e invade competência legislativa, conforme se vê no art. 2º da Constituição Federal:

Art. 2º, CF/88 – São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

A atuação do STF ao “corrigir” o conteúdo do Marco Civil revela um ativismo judicial exacerbado, que põe em xeque os próprios fundamentos da democracia representativa. Tal postura esbarra nos limites constitucionais do Poder Judiciário e compromete o sistema de freios e contrapesos (checks and balances), concebido por Montesquieu como essencial à preservação da liberdade e à contenção de abusos de poder.

Implicações Jurídicas e Políticas

O STF decidiu que as plataformas devem agir para remover conteúdos assim que forem notificadas, sob pena de sanções civis. Crimes contra a honra, por ora, ainda exigirão decisão judicial, mas todo o restante do “espectro discursivo” ficará sob moderação compulsória, o que gera riscos concretos à liberdade de expressão, assegurada constitucionalmente:

Art. 5º, inciso IV, CF/88 – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
Art. 5º, inciso IX, CF/88 – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.

Esse novo paradigma esvazia garantias fundamentais e delega às big techs — agora transformadas em “delegadas do Estado” — o dever de vigiar, julgar e punir, instaurando um modelo de censura privada com aval estatal.

Conclusão

O que se presencia é um momento dramático na história republicana brasileira: a consolidação de uma Corte que, sob o argumento da defesa da democracia, subverte seus próprios fundamentos. A censura, antes velada, agora é legalizada. O que se julgava ser um baluarte das garantias constitucionais — o Supremo Tribunal Federal — se torna agente da repressão simbólica.

Se o que pode ou não ser dito passa a depender da aprovação ou veto de uma instância sem representatividade eleitoral e sem controle direto do povo, então a liberdade de expressão está sob grave ameaça. O Brasil caminha para um modelo de internet tutelada, onde o medo da responsabilização pode levar ao silenciamento preventivo e à autocensura.

É preciso reafirmar a importância do princípio da legalidade, da independência dos poderes e da limitação do poder estatal. A democracia não sobrevive ao autoritarismo togado.

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RE 1.037.396
RE 1.057.258

*É Coronel veterano da Polícia Militar do Estado de São Paulo, com 38 anos de atuação na área de Segurança Pública. Doutor em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública, é também pós-graduado em Direito Penal e atualmente é Secretário de Segurança Cidadã de Santo André

Advogado licenciado, atua como membro consultor da Comissão de Segurança Pública da 100ª Subseção da OAB/SP – Ipiranga. É professor universitário há 17 anos na área de Direito Criminal, com atuação na PUC-Centro Universitário Assunção São Paulo, no Programa de Doutorado da Polícia Militar do Estado de São Paulo e na pós-graduação da Faculdade Legale.

Em 2023, coordenou os Conselhos Comunitários de Segurança da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo. É autor, coautor e organizador de 14 livros, com destaque para Vizinhança Solidária. Além de escritor e articulista, também se dedica à poesia.

@temistocles_telmo

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