Citação por vídeo? O devido processo penal sob ataque

 


*Temístocles Telmo

 1. Introdução

A recente decisão do ministro Alexandre de Moraes, que considerou comentários públicos do jornalista Paulo Figueiredo em vídeos como prova de ciência inequívoca das acusações, reacende o debate sobre os limites do devido processo legal no Brasil. O caso suscita questões fundamentais sobre a validade das formas de citação e os riscos de se flexibilizar garantias processuais essenciais.

Segundo a notícia, Moraes entendeu que os comentários do jornalista Paulo Figueiredo em vídeos públicos demonstrariam que ele tem pleno conhecimento das acusações contra si — e, por consequência, estaria “notificado” nos autos.

Essa interpretação substitui os meios formais de citação e intimação previstos no Código de Processo Penal (CPP) por um juízo subjetivo de conhecimento presumido a partir de falas em redes sociais.

Ministro Alexandre de Moraes, em despacho, considerou o blogueiro Paulo Renato de Oliveira Figueiredo Filho como notificado sobre a denúncia oferecida contra ele no âmbito da investigação sobre a tentativa de golpe de Estado atribuída ao entorno do ex-presidente Jair Bolsonaro. A decisão foi tomada após a PGR - Procuradoria-Geral da República denunciar Paulo Figueiredo por cinco crimes: organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, tentativa de golpe de Estado, dano qualificado contra o patrimônio da União e deterioração de patrimônio tombado. (MIGALHAS, 2025)

 2. Conceito e Previsão Legal da Citação

Citação é o ato processual que tem a finalidade de dar conhecimento ao réu da existência da ação penal, do teor da acusação, bem como cientificá-lo do prazo para a apresentação da resposta escrita. Em resumo, podemos dizer que a citação válida, é o chamamento do acusado ao processo.

A citação é o ato pelo qual se dá ciência formal ao réu de que existe contra ele um processo penal. Não é mera formalidade burocrática: é requisito essencial para a validade de qualquer processo acusatório.

Art. 363.  O processo terá completada a sua formação quando realizada a citação do acusado.          

§ 1o  Não sendo encontrado o acusado, será procedida a citação por edital.

§ 4o  Comparecendo o acusado citado por edital, em qualquer tempo, o processo observará o disposto nos arts. 394 e seguintes deste Código

A regra é que a citação deva ser real, ou pessoal, por meio de mandado com oficial de justiça, mas o CPP, nos artigos 352 a 362 do CPP, prevê formas excepcionais de citação — como a por hora certa ou por edital, sempre condicionadas a tentativas prévias e provas de não localização.

A citação real é aquela efetivada por mandado, por carta precatória, carta rogatória ou de ordem. Nelas o acusado é citado pessoalmente.

A citação ficta é aquela feita por edital quando o réu não é localizado para citação pessoal.

Já a citação com hora certa, inovação trazida ao processo penal pela Lei n. 11.719/2008, tem vez quando o réu não é encontrado para citação pessoal, porque está se ocultando para não ser citado.

 3. Nulidade processual

A falta de citação ou vícios insanáveis no ato citatório constituem causas de nulidade absoluta do processo (art. 564, III, e, do CPP), salvo se o acusado comparecer em juízo, dentro do prazo legal e apresentar a resposta escrita, por ter sido cientificado da acusação por outro meio qualquer.

“Uma vez constatado o vício de citação, impõe-se seja anulado o processo a partir do momento em que praticado o ato respectivo, expedindo-se, em benefício do paciente, o alvará de soltura. O vício de citação é o pior a macular o processo, já que inviabiliza o lídimo direito de defesa” (STF — HC 74.577 — Rel. Min. Marco Aurélio — DJU 28.02.1997 — p. 4.066).

A jurisprudência pacífica e a doutrina clássica são unânimes: não há processo válido sem citação válida. Presumir que alguém está ciente das acusações apenas por ter comentado sobre elas em rede social é romper com a lógica formal garantista do processo penal.

O CPP não prevê a citação presumida por exposição pública ou comentário em redes sociais. A ciência inequívoca exige prova de que o acusado teve contato formal e claro com os termos da acusação, sob pena de nulidade processual.

O conceito de “ciência inequívoca” é utilizado em casos excepcionais, como para convalidação de nulidades em intimações ou atos processuais já realizados. Porém, jamais foi reconhecido como substituto da citação inicial, o que transformaria a exceção em regra — e o garantismo em um risco.

A analogia criada pela decisão do ministro — de que vídeos públicos demonstram conhecimento técnico-jurídico dos termos da denúncia — representa, na prática, uma ficção jurídica perigosa. E ficções, no processo penal, geralmente servem para justificar arbitrariedades.

O uso de vídeos como prova de notificação fere frontalmente o princípio do contraditório e da ampla defesa, garantido pelo art. 5º, LV, da Constituição Federal, que assegura aos litigantes o direito de ser formalmente informado e de se defender.

Trata-se de uma inovação perigosa, que transforma a figura da citação — ato essencial para validade do processo — em um juízo subjetivo de conhecimento informal. O risco é evidente: qualquer manifestação pública poderia ser interpretada como ciência de um processo ainda não formalmente instaurado, rompendo com a segurança jurídica e a previsibilidade que o direito penal exige.

Além disso, decisões dessa natureza caminham para a juridicização do arbítrio, em que a vontade do julgador substitui os mecanismos legais positivados. E se tal entendimento se consolidar, abre-se espaço para uma série de distorções e precedentes:

(I) Réus poderão ser considerados cientes de processos apenas por comentários indiretos, entrevistas ou postagens;

(II) Cria-se um critério absolutamente subjetivo para avaliar a validade da citação;

(III) Enfraquece-se o devido processo legal (art. 5º, LIV da CF/88) e a ampla defesa e o contraditório (art. 5º, LV da CF/88).

O combate a crimes graves deve ser firme, mas nunca à custa da destruição das regras que sustentam o próprio sistema de justiça. Um processo sem garantias não é justiça: é vingança institucionalizada.

A citação é uma garantia do réu e do Estado. Ao desprezar as formas legais de citação, o Judiciário compromete não apenas o direito de defesa do acusado, mas sua própria legitimidade como agente imparcial do Estado.

O processo penal é um instrumento de liberdade, não de poder.

Como disse o jurista Piero Calamandrei, “o processo é a maneira civilizada de resolver conflitos”. Segundo o qual os advogados e juízes não podem permitir que o processo se torne um mero jogo ou joguete à disposição das partes, ao contrário, que o processo cumpra com seu destino histórico que é o de servir à concretização da justiça ou à harmonização eficiente dos interesses. (SCORSIM, 2005)

Quando ele deixa de seguir formas, passa a resolver conflitos à base da força, isso tem nome: autoritarismo.

Relativizar garantias processuais básicas, como o direito de ser formalmente citado, é criar um cenário de insegurança jurídica, especialmente em casos politicamente sensíveis. É estimular uma justiça penal de exceção, em nome de um suposto bem maior, que fragiliza o arcabouço constitucional.

Conclusão

Estamos diante de um momento decisivo para o Direito Penal e Processual Penal Brasileiro, permitir que se consolidem decisões fora dos trilhos legais é abrir caminho para uma justiça de exceção travestida de combate ao crime. A citação por vídeo não é inovação, é subversão. E o processo penal não pode ser palco de arbitrariedades, ainda que praticadas sob o manto do Supremo.

Sem citação válida, não há processo válido. Sem processo válido, não há justiça — apenas poder.

A citação é a porta de entrada do processo penal. Reduzir esse instituto a um “vídeo no YouTube” compromete não só a defesa do réu, mas a própria legitimidade do Estado-juiz. O combate a crimes, por mais graves que sejam, não pode se dar fora dos limites constitucionais. Ao romper com o devido processo legal, não se combate a ilegalidade: apenas se troca o réu.

É preciso reafirmar: sem processo regular, não há justiça legítima — apenas exercício de poder.

Referências

MIGALHAS. 2025. Moraes considera Paulo Figueiredo notificado após citação por edital. Moraes considera Paulo Figueiredo notificado após citação por edital. [Online] MIGALHAS, 30 de junho de 2025. [Citado em: 01 de julho de 2025.] https://www.migalhas.com.br/quentes/433688/moraes-considera-paulo-figueiredo-notificado-apos-citacao-por-edital.

SCORSIM, ERICSON MEISTER. 2005. Processo não pode ser um joguete à disposição das partes. Processo não pode ser um joguete à disposição das partes. [Online] conjur, 08 de setembro de 2005. [Citado em: 01 de julho de 2025.] https://www.conjur.com.br/2005-set-08/processo_nao_joguete_disposicao_partes/.

 

Sobre o autor:

Temístocles Telmo: É Coronel veterano da Polícia Militar do Estado de São Paulo, com 38 anos de atuação na área de Segurança Pública. Doutor em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública, é também pós-graduado em Direito Penal e atualmente é Secretário de Segurança Cidadã de Santo André.

Advogado licenciado, atua como membro consultor da Comissão de Segurança Pública da 100ª Subseção da OAB/SP – Ipiranga. É professor universitário há 17 anos na área de Direito Criminal, com atuação na PUC-Centro Universitário Assunção São Paulo, no Programa de Doutorado da Polícia Militar do Estado de São Paulo e na pós-graduação da Faculdade Legale.

Em 2023, coordenou os Conselhos Comunitários de Segurança da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo. É autor, coautor e organizador de 14 livros, com destaque para Vizinhança Solidária. Além de escritor e articulista, também se dedica à poesia.

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