A Audiência de Custódia e a Sensação de Impunidade: Reflexões a partir do Caso de Balneário Camboriú
Temístocles Telmo
Instituída no Brasil a partir da Resolução nº 213/2015 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a audiência de custódia tornou-se obrigatória após a alteração do art. 310 do Código de Processo Penal (CPP), dada pela Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime). Seu escopo é assegurar a apreciação imediata da legalidade da prisão e a verificação de eventuais abusos, garantindo ao preso em flagrante o direito de ser apresentado a um juiz em até 24 horas.
O recente episódio (19/08/25) em Balneário Camboriú (SC) , em que um casal foi flagrado com 176 kg de cocaína e 12,7 kg de crack, avaliados em R$ 25 milhões, e ainda assim colocado em liberdade após audiência de custódia, traz à tona o debate sobre a aplicação prática desse instituto e seus reflexos para a política criminal brasileira.
Marco Normativo da Audiência de Custódia
O art. 310 do CPP dispõe que, ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá, fundamentadamente, em até 24 horas:
- I – relaxar a prisão ilegal;
- II – converter a prisão em preventiva, quando presentes os requisitos do art. 312;
- III – conceder liberdade provisória, com ou sem medidas cautelares.
O Manual de Audiência de Custódia do CNJ (2016) esclarece que a finalidade teleológica do instituto é:
- Evitar prisões desnecessárias;
- Reduzir a superlotação carcerária;
- Garantir contraditório prévio e efetivo;
- Identificar e reprimir casos de maus-tratos e tortura.
Assim, a audiência de custódia traduz a implementação interna do art. 7.5 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), ratificada pelo Brasil em 1992.
O Caso Concreto de Balneário Camboriú
Conforme noticiado pela imprensa, após a apreensão da droga pela Polícia Militar de Santa Catarina (PMSC), o investigado alegou ter sido agredido pelos policiais no momento da prisão. O juiz da audiência homologou o flagrante, determinou investigação da conduta policial e concedeu liberdade provisória mediante medidas cautelares diversas da prisão.
A esposa, também presa, foi solta no mesmo dia após o marido assumir a responsabilidade pela droga.
Análise Crítica
1. O contraditório unilateral
Na prática, a audiência de custódia tem se resumido à oitiva exclusiva do preso, sem espaço para a manifestação efetiva dos policiais que realizaram a prisão. Como observa Aury Lopes Jr. (2019), o contraditório exige “a possibilidade de confronto de versões e não a prevalência automática de uma narrativa unilateral”.
2. A inversão da lógica da cautelaridade
O art. 312 do CPP prevê a prisão preventiva quando necessária para a garantia da ordem pública, conveniência da instrução criminal ou aplicação da lei penal. A apreensão de mais de 170 kg de cocaína evidencia de forma clara a gravidade concreta da conduta e o risco social do investigado. Ainda assim, optou-se pela liberdade, priorizando a apuração futura de eventual abuso policial. Em nítida decisão garantista militante ideológica.
A jurisprudência do STJ é firme no sentido de que a quantidade e natureza da droga apreendida justificam a prisão preventiva (HC 580.847/SC, Rel. Min. Ribeiro Dantas, Quinta Turma, j. 06/10/2020).
3. A sensação de impunidade
Casos como o presente transmitem à sociedade a impressão de que crimes de altíssima gravidade não recebem resposta penal adequada. Como alertou o sempre saudoso Luiz Flávio Gomes (2017), o direito penal simbólico perde legitimidade quando a persecução penal falha em situações de impacto social.
Conclusão
A audiência de custódia é um avanço civilizatório, mas não pode ser distorcida em instrumento de fragilização da repressão penal. O controle da legalidade da prisão e a investigação de eventuais abusos policiais devem coexistir com a necessidade de resguardar a ordem pública diante de crimes graves.
O caso de Balneário Camboriú expõe a necessidade de “virar a chave” da audiência de custódia: proteger direitos fundamentais sem desconsiderar a efetividade da persecução penal. Decisões como essa, ao privilegiarem narrativas unilaterais em detrimento da gravidade concreta do delito, ampliam a sensação de impunidade e corroem a confiança da sociedade na Justiça.
Referências
- BRASIL. Código de Processo Penal. Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941.
- BRASIL. Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019 (Pacote Anticrime).
- CNJ. Manual de Audiência de Custódia. Brasília: CNJ, 2016.
- Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), 1969.
- LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 18ª ed. São Paulo: Saraiva, 2021.
- GOMES, Luiz Flávio. Direito Penal: Introdução Crítica. São Paulo: RT, 2017.
- STJ. HC 580.847/SC. Rel. Min. Ribeiro Dantas, Quinta Turma, j. 06/10/2020.
Sobre o autor:
Temístocles Telmo: É Coronel veterano da Polícia Militar do Estado de São Paulo, com 38 anos de atuação na área de Segurança Pública. Doutor em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública, é também pós-graduado em Direito Penal e atualmente é Secretário de Segurança Cidadã de Santo André. Advogado licenciado, atua como membro consultor da Comissão de Segurança Pública da 100ª Subseção da OAB/SP – Ipiranga. É professor universitário há 17 anos na área de Direito Criminal, com atuação na PUC-Centro Universitário Assunção São Paulo, no Programa de Doutorado da Polícia Militar do Estado de São Paulo e na pós-graduação da Faculdade Legale. Em 2023, coordenou os Conselhos Comunitários de Segurança da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo. É autor, coautor e organizador de 15 livros, com destaque para Vizinhança Solidária. Além de escritor e articulista, também se dedica à poesia.
Comentários
Postar um comentário