Medidas cautelares de retenção de passaporte, foro por prerrogativa de função e competência do STF: análise jurídico-constitucional a partir do caso Silas Malafaia


Temístocles Telmo

Examina-se a legalidade da decisão monocrática proferida pelo ministro Alexandre de Moraes que, no âmbito do Inquérito 4.921, determinou a apreensão do passaporte e proibiu o pastor Silas Malafaia de deixar o País.

Discutem-se (i) a natureza da medida cautelar prevista no art. 320 do Código de Processo Penal, (ii) o alcance do direito fundamental de locomoção (art. 5º, XV, da Constituição), (iii) a extensão do foro por prerrogativa de função (art. 102, I, b, da Constituição) e (iv) a controvérsia em torno da competência originária do Supremo Tribunal Federal em inquéritos instaurados de ofício com base no art. 43 de seu Regimento Interno.

Conclui-se que a defesa do Estado Democrático de Direito não autoriza a elasticidade de competências nem o afastamento dos princípios do juiz natural, do devido processo legal e da proporcionalidade.

Introdução

O Estado de Direito restringe o poder estatal inclusive na persecução de fatos que, em tese, atentem contra a ordem constitucional. Essa premissa vale ainda que o investigado desperte forte antipatia política, religiosa ou ideológica.

O ato judicial que impediu Silas Malafaia de viajar ao exterior reacendeu o debate sobre os limites das cautelares pessoais, a competência do Supremo Tribunal Federal e a legitimidade de inquéritos abertos de ofício.

Fatos juridicamente relevantes

Em 15 de agosto de 2025, decisão monocrática no Inq. 4921 ordenou a apreensão do passaporte de Silas Malafaia, proibiu-o de sair do território nacional e determinou seu depoimento imediato quando desembarcou de Lisboa.

Segundo a Polícia Federal, o inquérito apura eventual participação em organização que teria fomentado os atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023.

Frise-se: O investigado não exerce cargo que atraia foro por prerrogativa de função.

Marco normativo aplicável

Constituição Federal

“Art. 5º, XV – é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens, salvo em virtude de ordem judicial.”
“Art. 5º, LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.”
“Art. 5º, LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.”
“Art. 102, I, b – compete ao Supremo Tribunal Federal processar e julgar, originariamente, nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República.”

Código de Processo Penal

O art. 319 enumera medidas cautelares diversas da prisão, entre elas a proibição de ausentar-se da comarca (inc. IV). Já o art. 320 disciplina especificamente a proibição de ausentar-se do País e a entrega do passaporte, nos seguintes termos:

“A proibição de ausentar-se do País e a entrega do passaporte serão comunicadas pelo juiz às autoridades encarregadas da fiscalização de saída do território nacional, às quais caberá impedir ou restringir a saída do investigado ou do acusado.”

Regimento Interno do STF:

Art. 43 – “Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou designará outro Ministro relator.”

Liberdade de locomoção e proporcionalidade da medida

A cautelar de retenção de passaporte é, em abstrato, compatível com a Constituição.

Contudo, a sua imposição exige:

(a) plausibilidade de autoria e materialidade do delito,

(b) risco concreto de evasão ou de frustração da investigação e

(c) subsidiariedade em relação à prisão preventiva.

No caso concreto não houve notícia de tentativa de fuga, descumprimento de ordens judiciais anteriores ou comportamento que indicasse iminente evasão, o que suscita dúvidas sobre a necessidade e a proporcionalidade da medida.

Competência originária do STF e foro por prerrogativa de função

A regra é clara: somente autoridades arroladas no art. 102, I, b, gozam de foro no Supremo Tribunal Federal. Como Silas Malafaia não se enquadra em nenhuma das hipóteses ali descritas, o processo deveria iniciar na primeira instância. O Tribunal, entretanto, tem estendido sua competência por conexão ou continência quando investigados com foro — deputados ou senadores, por exemplo — aparecem no mesmo contexto fático. Essa construção é excepcional e deve ser interpretada restritivamente para não violar o princípio do juiz natural.

Inquérito instaurado de ofício e modelo acusatório

Desde 2019, o STF invocou o art. 43 de seu Regimento Interno para instaurar inquéritos sem provocação do Ministério Público, alegando necessidade de proteger a própria Corte e, por extensão, o regime democrático. Tal iniciativa, embora já referendada em decisões colegiadas, tensiona o sistema acusatório delineado pela Constituição, que atribui ao Ministério Público a titularidade da ação penal e ao juiz a função de julgar, não de investigar. Ampliar indefinidamente essa prática compromete a separação de funções típica do devido processo legal.

Consequências do eventual excesso de autoridade

A elasticidade interpretativa na definição de competência e na imposição de medidas restritivas pode gerar nulidades futuras, minar a confiança da sociedade no Poder Judiciário e, paradoxalmente, fragilizar a própria legitimidade do STF como guardião da Constituição. Além disso, cria-se precedente perigoso: hoje alcança um líder religioso conservador; amanhã poderá alcançar qualquer cidadão que se torne incômodo ao poder estabelecido.

Conclusão

O direito fundamental de locomoção só pode ser restringido mediante decisão judicial legítima, motivada e proporcional. Embora seja imperioso combater atos que atentem contra o Estado Democrático de Direito, essa defesa não autoriza o afastamento das garantias individuais nem a expansão atípica da competência do Supremo Tribunal Federal. O caso Silas Malafaia evidencia a necessidade de reconduzir investigações penais ao modelo acusatório, garantindo-se a observância estrita do devido processo legal e do juiz natural, sob pena de transformar instrumentos de proteção democrática em mecanismos excepcionais de poder.

Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

BRASIL. Decreto-Lei n.º 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal).

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Regimento Interno do STF.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Inquérito 4 781, rel. min. Alexandre de Moraes, j. 17.6.2020.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Petição 8 971 AgR, rel. min. Luiz Fux, j. 31.5.2023.

Sobre o autor:

É Coronel veterano da Polícia Militar do Estado de São Paulo, com 38 anos de atuação na área de Segurança Pública. Doutor em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública, é também pós-graduado em Direito Penal e atualmente é Secretário de Segurança Cidadã de Santo André. Advogado licenciado, atua como membro consultor da Comissão de Segurança Pública da 100ª Subseção da OAB/SP – Ipiranga. É professor universitário há 17 anos na área de Direito Criminal, com atuação na PUC-Centro Universitário Assunção São Paulo, no Programa de Doutorado da Polícia Militar do Estado de São Paulo e na pós-graduação da Faculdade Legale. Em 2023, coordenou os Conselhos Comunitários de Segurança da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo. É autor, coautor e organizador de 15 livros, com destaque para Vizinhança Solidária. Além de escritor e articulista, também se dedica à poesia


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