O Ativismo Judicial e a Dissociação da Realidade no Enquadramento de Crimes de Tráfico de Drogas

Temístocles Telmo

Introdução – Resenha Fática

Na quarta-feira, 20 de agosto de 2025, policiais militares em patrulhamento na região de Itu (SP) receberam informações sobre um veículo suspeito de distribuir drogas. O motorista, ao perceber a aproximação da viatura, tentou fugir em alta velocidade pela Rodovia Castello Branco, em Sorocaba (SP), mas foi interceptado e detido já no município de Itu.

Na vistoria, foram localizados 244 tijolos de pasta base de cocaína, totalizando aproximadamente 200 quilos do entorpecente, que estavam acondicionados na parte traseira do veículo. De acordo com a Secretaria de Segurança Pública (SSP-SP), a carga tinha como destino a cidade de Campos do Jordão. O homem foi preso em flagrante e conduzido à Delegacia de Itu.

Entretanto, em audiência de custódia, o juiz Marcelo Nalesso Salmaso concedeu liberdade provisória, aplicando o chamado tráfico privilegiado (art. 33, §4º, da Lei 11.343/2006). Em sua decisão, afirmou tratar-se de “pequena quantidade de tóxico apreendida” e que “a quantidade não foi exacerbada”, destacando ainda que o acusado era réu primário. A soltura ocorreu sem pagamento de fiança.

No mesmo dia, em ocorrência paralela em Mairinque (SP), outro motorista foi preso ao tentar fugir pela Rodovia Raposo Tavares (SP-270), sendo apreendidos 90 quilos de crack. O caso também foi registrado como tráfico de drogas.

Esses fatos levantam o debate sobre os limites da audiência de custódia, a aplicação do tráfico privilegiado e, sobretudo, a dissociação de certas decisões judiciais em relação à realidade do combate ao crime organizado.

O Papel da Audiência de Custódia e seus Limites

A audiência de custódia, prevista no art. 310 do Código de Processo Penal, tem como finalidade verificar a legalidade da prisão, apurar eventuais maus-tratos e decidir sobre a necessidade da manutenção da custódia cautelar ou a aplicação de medidas alternativas.

Não compete ao magistrado, nesse momento, antecipar juízo de valor sobre a incidência do tráfico privilegiado, uma vez que tal análise depende de instrução probatória regular, com contraditório e ampla defesa, a ser realizada pelo juízo natural do processo. Ao decidir pela aplicação antecipada do benefício, o juiz excede suas atribuições e compromete a lógica do devido processo legal.

O Tráfico Privilegiado e a Jurisprudência das Cortes Superiores

O art. 33, §4º, da Lei de Drogas prevê a redução da pena nos casos em que o réu é primário, possui bons antecedentes, não integra organização criminosa nem se dedica a atividades criminosas. Contudo, a quantidade e a natureza da droga apreendida são elementos determinantes na avaliação da dedicação do agente ao crime.

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF) é clara nesse ponto:

  1. STJ: “A apreensão de elevada quantidade de droga é suficiente para afastar a aplicação do redutor do tráfico privilegiado, pois denota envolvimento com a criminalidade organizada” (HC 541.157/SP, Rel. Min. Laurita Vaz, 6ª Turma, julgado em 18/02/2020).
  2. STF: “A expressiva quantidade de droga apreendida evidencia dedicação habitual à atividade criminosa, não sendo cabível o tráfico privilegiado” (HC 118.533/SP, Rel. Min. Teori Zavascki, 2ª Turma, julgado em 23/06/2015).

Diante desses precedentes, considerar 200 quilos de cocaína como “pequena quantidade” é não apenas juridicamente insustentável, mas também uma afronta à lógica e ao senso comum.

O Descolamento da Realidade e seus Efeitos

Decisões que aplicam benefícios penais em situações de tamanha gravidade revelam um ativismo militante de caráter ideológico, com graves efeitos práticos:

  1. Desmotivam os policiais militares, que, apesar de atuarem como verdadeiros sacerdotes em defesa da sociedade, veem seu trabalho fragilizado por decisões lenientes;
  2. Incentivam o criminoso, ao transmitir a percepção de que mesmo grandes carregamentos podem ser relativizados judicialmente;
  3. Intensificam a sensação de insegurança, já apontada pela população como a maior preocupação, superando saúde e educação;
  4. Fomentam a impunidade e a reincidência criminal, criando um ciclo perverso de descrédito do sistema de justiça.

Considerações Finais

A crítica não se dirige ao garantismo penal em si, mas à sua deturpação. Garantir direitos fundamentais é assegurar um processo justo e legal, mas não pode significar relativizar condutas de extrema gravidade.

O exame sobre a aplicação ou não do tráfico privilegiado deve ocorrer no momento oportuno, perante o juízo processante, após a produção de provas, e jamais ser precipitado em audiência de custódia.

Ao tratar 200 quilos de cocaína como quantidade ínfima, o Judiciário não apenas se distancia da jurisprudência consolidada, como também enfraquece a legitimidade do Estado e agrava o sentimento de impunidade, contribuindo para o aumento da criminalidade organizada.

Sobre o autor:

É Coronel veterano da Polícia Militar do Estado de São Paulo, com 38 anos de atuação na área de Segurança Pública. Doutor em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública, é também pós-graduado em Direito Penal e atualmente é Secretário de Segurança Cidadã de Santo André. Advogado licenciado, atua como membro consultor da Comissão de Segurança Pública da 100ª Subseção da OAB/SP – Ipiranga. É professor universitário há 17 anos na área de Direito Criminal, com atuação na PUC-Centro Universitário Assunção São Paulo, no Programa de Doutorado da Polícia Militar do Estado de São Paulo e na pós-graduação da Faculdade Legale. Em 2023, coordenou os Conselhos Comunitários de Segurança da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo. É autor, coautor e organizador de 15 livros, com 

destaque para Vizinhança Solidária.

Sobre o autor:

Temístocles Telmo: É Coronel veterano da Polícia Militar do Estado de São Paulo, com 38 anos de atuação na área de Segurança Pública. Doutor em Ciências Policiais de Segurança e Ordem 

Pública, é também pós-graduado em Direito Penal e atualmente é Secretário de Segurança Cidadã de Santo André. Advogado licenciado, atua como membro consultor da Comissão de 

Segurança Pública da 100ª Subseção da OAB/SP – Ipiranga. É professor universitário há 17 anos na área de Direito Criminal, com atuação na PUC-Centro Universitário Assunção São Paulo, no Programa de Doutorado da Polícia Militar do Estado de São Paulo e na pós-graduação da Faculdade Legale. Em 2023, coordenou os Conselhos Comunitários de Segurança da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo. É autor, coautor e organizador de 15 livros, com destaque para Vizinhança Solidária.






Comentários

  1. Com essa quantidade, e passa de comum para previlegiado , eh!! cada dia mais difícil, que Deus proteja nossos patrulheiros, abraço Mestre .

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    1. Incrível esta decisão e ainda pior o juíz alegou que usou um texto pronto, copia e cola, e mesmo assim manteve o criminoso traficante em liberdade

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