STF põe fim à presunção de inocência no Tribunal do Júri: entre a soberania dos veredictos e o risco da insegurança jurídica
Temístocles Telmo[1]
1. Introdução
A constitucionalidade da execução imediata da pena imposta pelo Tribunal do Júri voltou ao centro do debate jurídico nacional, 22/08/25, após o julgamento do Tema 1068 da Repercussão Geral pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em setembro de 2024.
O STF entende que a soberania dos veredictos autoriza a prisão imediata dos réus condenados, independentemente da pena aplicada (Barroso, 2024; CartaCapital, 2025; Ruiz Filho, 2024).
Trata-se de decisão com efeito vinculante e profunda repercussão sobre o equilíbrio entre o clamor social por justiça e as garantias constitucionais dos acusados.
2. O julgamento do STF e a redação do artigo 492 do CPP
O plenário do STF, por maioria, apreciando o tema 1.068 da repercussão geral, conheceu do recurso extraordinário (RE 1235340/SC) e fixou a seguinte tese: "A soberania dos veredictos do Tribunal do Júri autoriza a imediata execução de condenação imposta pelo corpo de jurados, independentemente do total da pena aplicada" (Barroso, 2024; Temístocles, 2024).
Com esse entendimento, o Tribunal rejeitou a limitação prevista no art. 492, I, "e", do Código de Processo Penal (CPP), que condicionava a execução provisória da pena apenas para condenações iguais ou superiores a 15 anos, e suprimiu o efeito suspensivo de apelações contra decisões do júri, alterando a sistemática dos §§ 4º e 5º do mesmo artigo.
Conforme destacou Ruiz Filho (2024), a decisão "demonstra descomedimento jurisdicional", na medida em que retira do Parlamento a possibilidade de calibrar a execução da pena e transfere ao Judiciário o papel de inovador legislativo, criando distorções e usurpando competências.
3. Clamor social, crimes bárbaros e os limites do Judiciário
Não há dúvida de que crimes hediondos como homicídios e feminicídios alimentam um anseio legítimo da sociedade por respostas punitivas rápidas e eficazes (CartaCapital, 2025). Contudo, como já salientei em artigo anterior (Temístocles, 2024), e também acentuou Antonio Ruiz Filho: "Sua missão [do Judiciário] é julgar fatos pretéritos, cujo efeito dissuasório das suas decisões é empiricamente limitado. Não fosse assim, bastaria instituir a pena de morte para fazer cessar a criminalidade violenta, o que não sucede na experiência de outros países. [...] Não é correto entender que a nossa Justiça criminal seja leniente - impressão leiga que não se confirma na realidade -, haja vista a superlotação dos presídios - comparáveis a masmorras medievais -, alçando o Brasil ao terceiro lugar no mundo em número de encarcerados" (Ruiz Filho, 2024, p. 2-3).
O Judiciário não deve, sob justificativa de atender ao clamor público, substituir-se ao Legislativo para inovar no ordenamento e relativizar garantias fundamentais como a presunção de inocência (CF, art. 5º, LVII).
4. Presunção de inocência, dupla jurisdição e precedentes do STF
Historicamente, tanto a Constituição quanto o artigo 283 do CPP proíbem a execução provisória antes do trânsito em julgado, salvo nas hipóteses de prisão cautelar devidamente fundamentada (Brasil, 2019). O novo entendimento do STF, ao desvincular a execução provisória dos requisitos cautelares e torná-la automática, rompe com o precedente das ADCs 43, 44 e 54 e amplia o risco de insegurança jurídica (Temístocles, 2024; Ruiz Filho, 2024):
"Contudo, a decisão da Suprema Corte que autoriza a prisão automática como efeito da condenação pelo Tribunal popular choca-se com princípios elementares do processo penal, inclusive direitos fundamentais emanados da Constituição [...] Antes é preciso reconhecer que a prisão antecipada ao trânsito em julgado, mesmo anterior ao julgamento pelo Júri, sempre foi possível [...] desde que presentes os pressupostos taxativos da prisão preventiva" (Ruiz Filho, 2024, p. 3).
Como lembro em meu artigo anterior: "O complicado em tudo isso, é que novamente o STF legislou e inovou no ordenamento, já que a decisão do Tribunal do Júri é uma decisão de 1ª Instância. E a Constituição Federal assegura o Princípio da Inocência no 5°, inciso LVII, segundo o qual 'ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória'" (Temístocles, 2024, p. 6).
5. A necessidade de atuação legislativa
Defendo — como já fiz em artigo anterior (Temístocles, 2024) e em consonância com Antonio Ruiz Filho (2024) — que o meio termo mais democrático e seguro seria a reforma legislativa do artigo 283 do CPP, permitindo a execução da pena apenas após confirmação por órgão colegiado em segunda instância e desde que presentes os requisitos da prisão preventiva. A transferência dessa decisão para o STF, sem o crivo do processo legislativo, enfraquece o Estado de Direito e inaugura perigosos precedentes institucionais (Ruiz Filho, 2024; Barroso, 2024).
Ruiz Filho sintetiza: "A soberania das decisões do Júri tem significado próprio e suas inerentes consequências processuais, sem afetar a presunção de inocência constitucional, que impõe a regra do art. 283 do Código de Processo Penal, de sorte a permitir o exercício do duplo grau de jurisdição, excluída a prisão como decorrência de decisão condenatória emanada do primeiro grau" (Ruiz Filho, 2024, p. 7).
6. Conclusão
Por mais legítimo que seja o apelo por punição imediata, especialmente em crimes tão graves, é imprescindível que mudanças dessa envergadura ocorram no Legislativo, com amplo debate democrático. A cada invasão do STF no papel de legislar, amplifica-se a instabilidade e o sentimento de imprevisibilidade nas regras do processo penal. Como já sustentei noutra oportunidade: "Mesmo que a tese seja de que a decisão do Conselho de Sentença, proferida pelos jurados, é soberana, e que eventual recurso de uma decisão, em nada mudaria o mérito, não se pode concordar com tal precedente, que abre mais um capítulo nesta constante insegurança jurídica que atravessamos" (Temístocles, 2024, p. 7).
Referências
Barroso, Luís Roberto. Relatório do RE 1235340/SC, Tema 1068 da Repercussão Geral, STF, 12 set. 2024.
Brasil. Código de Processo Penal. Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019.
CartaCapital. STF confirma prisão imediata após o júri popular. 22 ago. 2025. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/justica/stf-confirma-prisao-imediata-apos-o-juri-popular/
Ruiz Filho, Antonio. A prisão imediata após julgamento pelo Júri – Uma usurpação de poder. Migalhas, 16 set. 2024. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/415292/a-prisao-imediata-apos-julgamento-pelo-juri--uma-usurpacao-de-poder
Temístocles, Telmo. STF põe fim à presunção de inocência no Tribunal do Júri: uma análise crítica do Tema 1068 da Repercussão Geral. Jusbrasil, 16 set. 2024. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/stf-poe-fim-a-presuncao-de-inocencia-no-tribunal-do-juri/2733928971
[1] É Coronel veterano da Polícia Militar do Estado de São Paulo, com 38 anos de atuação na área de Segurança Pública. Doutor em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública, é também pós-graduado em Direito Penal e atualmente é Secretário de Segurança Cidadã de Santo André. Advogado licenciado, atua como membro consultor da Comissão de Segurança Pública da 100ª Subseção da OAB/SP – Ipiranga. É professor universitário há 17 anos na área de Direito Criminal, com atuação na PUC-Centro Universitário Assunção São Paulo, no Programa de Doutorado da Polícia Militar do Estado de São Paulo e na pós-graduação da Faculdade Legale. Em 2023, coordenou os Conselhos Comunitários de Segurança da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo. É autor, coautor e organizador de 15 livros, com destaque para Vizinhança Solidária. Além de escritor e articulista, também se dedica à poesia.
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