Entre o nervosismo que autoriza a abordagem e a rotina que a invalida: o STJ e o STF em sentidos opostos no mesmo 2025

 


Quem garante o garantidor?

Uma análise crítica sobre a (in)coerência jurisprudencial nas abordagens policiais

 

Temístocles Telmo[1]

1. Introdução

A segurança pública, na estrutura do Estado Democrático de Direito, repousa sobre um tripé: legalidade, proporcionalidade e confiança na atuação do agente público. No entanto, a jurisprudência pátria tem oscilado de forma preocupante entre o rigor e a complacência, gerando insegurança jurídica tanto ao cidadão quanto ao policial.

Recentes decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF) expõem um cenário de contradições quanto à validade das abordagens pessoais e à aferição das chamadas fundadas razões. Tais divergências suscitam uma questão de fundo: quem garante o garantidor? Isto é, quem protege o policial que, ao agir dentro dos limites do dever, se vê exposto ao risco jurídico da interpretação volúvel dos tribunais?

 2. As decisões em confronto

2.1. O “baculejo” proibido – STJ, 2022

Em 19 de abril de 2022, o STJ decidiu, no RHC 158.580, que a denúncia anônima, a intuição policial ou abordagens de rotina não configuram, por si só, fundadas razões para a busca pessoal. O Tribunal firmou o entendimento de que a prática do chamado “baculejo” fere o artigo 244 do Código de Processo Penal e o princípio da legalidade, quando desacompanhada de indícios objetivos e verificáveis.

Extrato da decisão: “A prática da busca pessoal, conhecida no Brasil como baculejo ou enquadro, depende da existência de fundadas razões que possam ser concretamente aferidas e justificadas a partir de indícios. Denúncia anônima, intuição policial ou mesmo abordagens ‘de rotina’ não são suficientes para autorizar a medida.”(STJ, RHC 158.580, j. 19/04/2022)

 2.2. A guinada jurisprudencial – STJ, 2025

Contudo, em 16 de setembro de 2025, o próprio STJ alterou sua posição. No julgamento do HC 888.216-GO, reconheceu-se que o mero nervosismo diante da aproximação policial pode configurar fundadas razões para a abordagem pessoal.

Extrato da decisão: “O mero nervosismo apresentado pela pessoa ao ver a aproximação da polícia dá fundadas razões para a abordagem pessoal. Essa agora é a orientação das duas turmas criminais do STJ.” (STJ, HC 888.216-GO, j. 16/09/2025)

O ministro Carlos Brandão destacou, com razão prática, que “o dia a dia da polícia é diferente do nosso” e que a Corte deveria reconhecer a legitimidade da intuição profissional, enquanto Rogério Schietti, vencido, criticou o que chamou de “retorno ao status quo que consolida o autoritarismo que marca a atuação do Estado perante o indivíduo”.

Temos, portanto, duas teses diametralmente opostas, emanadas da mesma Corte, sobre a mesma conduta.

2.3. STF – Rigidez interpretativa e Tema 280

No ARE 1.562.900/RS, julgado em 1º de setembro de 2025, o STF, por decisão monocrática, do Ministro Nunes Marques, invalidou provas obtidas após abordagem veicular de rotina, alegando ausência de fundadas razões.

“A conduta prévia do réu se limitou a estar em um veículo, em uma corrida por aplicativo, o que é evidentemente lícito (...). A abordagem em virtude do local do fato e das características físicas do réu e do motorista muito se assemelha à abordagem por etiquetamento combatida pelas Cortes Superiores.” (STF, ARE 1.562.900/RS, j. 01/09/2025)

Essa decisão, entretanto, se apresenta em tensão com o Tema 280 (RE 603.616/RO, Rel. Min. Gilmar Mendes, 2010), no qual o STF consolidou que o ingresso forçado em domicílio sem mandado judicial é legítimo quando amparado em fundadas razões que indiquem flagrante delito, reforçando a necessidade de considerar o contexto concreto.

“O ingresso forçado em domicílio sem mandado judicial apenas se revela legítimo — a qualquer hora do dia — quando amparado em fundadas razões, devidamente justificadas pelas circunstâncias do caso concreto, que indiquem estar ocorrendo, no interior da casa, situação de flagrante delito.” (STF, RE 603.616/RO, DJe 08/10/2010)

O RE 1.447.939/SP reafirma essa orientação, destacando que a legitimidade da ação policial deve ser aferida pelo contexto e pela experiência do agente, e não por presunções abstratas.

Dessa forma, existe uma clara incoerência institucional: se até a invasão domiciliar depende de fundadas razões, como negar validade a uma abordagem veicular baseada em sinais objetivos de suspeição?

3. O policial no labirinto da jurisprudência

O policial enfrenta uma encruzilhada: agir pode gerar nulidade; não agir, pode gerar tragédia.

O conceito de fundadas razões, fluido por definição, torna-se instrumento de insegurança. Dependendo do tribunal ou do relator, a mesma conduta é vista ora como zelo funcional, ora como abuso de autoridade. E essa instabilidade compromete o exercício da função policial e a própria confiança da sociedade no sistema de justiça.

4. Considerações finais

A oscilação jurisprudencial entre STJ e STF evidencia a distância crescente entre teoria e prática. A segurança pública não se faz com abstrações: exige decisões coerentes, previsíveis e alinhadas com a realidade do agente em campo.

O Estado deve garantir, ao policial, presunção de legalidade de seus atos, salvo prova robusta em contrário, respeitando o ofício, a experiência e o risco inerente à atividade policial.

Enquanto a Justiça oscila, o garantidor — o policial — e a própria confiança pública na lei são os que pagam o preço.

Referências

·STJ – RHC 158.580, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, j. 19 abr. 2022.

·STJ – HC 888.216-GO, Rel. Min. Carlos Brandão, j. 16 set. 2025.

·STF – ARE 1.562.900/RS, j. 01 set. 2025.

·STF – RE 603.616/RO, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe 08/10/2010 (Tema 280).

·STF – RE 1.447.939/SP, j. 2024.

STJ – REsp 1.574.681/RS, jurisprudência correlata sobre fundadas razõe


[1] Temístocles Telmo: Doutor e Mestre em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública. Pós-Graduado lato senso em Direito Penal. Coronel veterano da Polícia Militar do Estado de São Paulo. Com 38 anos de experiência de atuação na Segurança Pública. Professor de Direito Criminal na PUC-Assunção. Advogado e membro da Comissão de Segurança Pública da 100ª Subseção do Ipiranga da OAB São Paulo. Autor, coautor e organizador de 16 (dezesseis) livros. É escritor, articulista e poeta. Em 2023, coordenou os Conselhos Comunitários de Segurança da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo e foi Secretário de Segurança de Santo André (2024-2025).


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