A PRISÃO DE JAIR BOLSONARO E A ESTÉTICA DO AUTORITARISMO JUDICIAL, UMA RESENHA CRÍTICA DA ESPECTACULARIZAÇÃO NO BRASIL

 



Temístocles Telmo[1]

 

De tanto ver triunfar as nulidades; de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça. De tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto.

Rui Barbosa Nota: Trecho do discurso proferido no Senado Federal, em 1914.

 

Prisão Preventiva no Caso Bolsonaro

O país amanheceu atônito neste dia 22 de novembro diante de mais um capítulo dessa novela jurídica que já ultrapassou o limite do aceitável. A prisão preventiva do presidente Jair Bolsonaro, construída em uma velocidade desejável para todos nós profissionais do direito diante dos inúmeros processos em trâmite no Brasil, mas que a triste realidade nos mostra o contrário. Tudo isso revela não apenas um ato isolado, mas a consolidação de um modelo de exercício de poder que já se tornou rotina. Um modelo em que a toga virou luz de palco e o processo penal, em vez de procedimento técnico, converteu-se em roteiro dramático.

A conversão da prisão domiciliar de Jair Messias Bolsonaro em prisão preventiva, determinada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), nesta madrugada, sob a relatoria do ministro Alexandre de Moraes, expõe o processo de uma espécie de espetacularização judicial e de concentração de poder decisório no contexto pós-2019.

Verifica-se, desde os primeiros inquéritos instaurados, o exercício simultâneo dos papéis de vítima, julgador e investigador pelo relator, rompendo com princípios básicos do devido processo legal.

O cenário que se repete, a centralização do poder e a ausência de freios, que desde 2019, já é possível notar o fio contínuo que atravessa quase todos os episódios envolvendo opositores ao STF. Um único ministro, repita-se, acumula funções de vítima, investigador e julgador, sem jamais se declarar impedido ou suspeito. Essa permanência absoluta, essa ausência de autocontenção, cria um ambiente em que qualquer fato político pode ser enquadrado nos inquéritos intermináveis que orbitam seu gabinete.

A prisão de Bolsonaro nasce dessa mesma lógica. É mais um passo no mesmo caminho, um trecho novo da mesma estrada. Nada surpreende, mas tudo preocupa.

Para quem não lida com o Direito Processual e Penal diariamente, vamos a um pequeno resumo da Fundamentação Legal da Prisão Preventiva e Cautelares:


Código de Processo Penal (CPP):

Art. 312 (Prisão Preventiva): A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado.

§ 1º A prisão preventiva também poderá ser decretada em caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares.


Art. 319 (Medidas Cautelares Diversas da Prisão): Estabelece que o juiz pode aplicar alternativas à prisão, como:

I - comparecimento periódico em juízo, no prazo e nas condições fixadas pelo juiz, para informar e justificar atividades;

II - proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações;

III - proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante;

IV - proibição de ausentar-se da Comarca quando a permanência seja conveniente ou necessária para a investigação ou instrução;

V - recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos;

VI - suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais;

VII - internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável (art. 26 do Código Penal) e houver risco de reiteração;

VIII - fiança, nas infrações que a admitem, para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial;

IX - monitoração eletrônica.

 

Por várias vezes a decisão menciona o descumprimento das cautelares impostas (remoção de tornozeleira, uso de redes sociais, aproximação indevida de embaixadas, aglomerações e tentativas de fuga). Assim, destacamos os 4 pontos centrais em que se baseou a conversão:

I. risco de fuga, baseado na fuga do Deputado Ramagem;

II. convocação de vigílias religiosas nas proximidades da casa;

III. violação da tornozeleira;

IV. proximidade da residência de embaixadas

 

Passando a analisar estes pontos, temos talvez o ponto de partida da prisão, que foi a suposta tentativa de violação da tornozeleira eletrônica. Só que não houve perícia prévia. Nada foi examinado, primeiro se prendeu. Não se investigou falha mecânica, bateria, sinal, defeito. O equipamento simplesmente parou de transmitir, algo banal no sistema do país inteiro. Isso costuma gerar reconfiguração, visita técnica, não prisão preventiva em regime emergencial. Como ocorrido a menos de um mês, 27/10/25, em que o ex-presidente Collor disse ao STF que a tornozeleira ficou 36 horas desligada porque a bateria acabou e ele não viu[i].

E mesmo que as investigações precisem correr em sigilo, tem sido uma prática por parte de algumas instituições aderir a espetacularização das redes e passam a filmar eventos judiciais e sem qualquer pudor soltam na rede. Neste caso em particular, há um vídeo circulando em que o presidente diz que usou um ferro de solda na tornozeleira e segundo a Secretaria de Estado de Administração Penitenciária, o equipamento tinha sinais claros e importantes de avarias.

Sobre o tema, o professor Andre Marsiglia, traz que romper, ou tentar romper, a tornozeleira não autoriza, por si só e sem contraditório, a conversão da medida cautelar em prisão preventiva. E mesmo que tenha havido tentativa de rompimento intencional da tornozeleira, o juiz precisa: (1) intimar a defesa para prestar esclarecimentos e, obrigatoriamente, (2) demonstrar que o rompimento indica risco concreto de fuga.

Na decisão, não há qualquer indício real de fuga, apenas ilações e conjecturas sobre embaixadas e atos de terceiros. Juiz não inventa; juiz decide sobre fatos concretos.

E assim, o óbvio foi descartado. Preferiram a versão mais cinematográfica, aquela que rendia manchetes. E, quando a prova é ignorada, o processo perde seu norte.

A narrativa da fuga e a vigília que nem existiu, ou seja, a criatividade chega ao ponto de afirmar que a vigília convocada nas redes serviria de “pano de fundo” para uma fuga espetacular. Só há um detalhe incômodo, a vigília não aconteceu. E há outro ainda maior, quem convocou a vigília foi seu filho, não Bolsonaro. O presidente agora preso não chamou ninguém para nada, não planejou manifestação alguma, não se moveu.

ONDE ESTÁ A INDIVIDUALIZAÇÃO DAS CONDUTAS? ONDE ESTÁ O PRINCÍPIO QUE SEPARA ATITUDE PRÓPRIA DE ATITUDE ALHEIA? ONDE ESTÁ A LINHA QUE SEMPRE PRESERVOU A IDEIA DE QUE CADA UM RESPONDE PELO QUE FAZ, NÃO PELO QUE OS OUTROS FAZEM?

Desapareceu!

O processo virou colcha de retalhos em que fatos de terceiros passam a justificar prisão de quem sequer aparece no enredo original, considerando que na decisão se menciona uma suposta tentativa de intervenção do STF por parte dos EUA. Desconsiderando o exercício legítimo da fala de um Deputado Federal, que deveria ter imunidade, mas que dentro desse cenário posto, foi denunciado nesta semana, e quem também está pagando a conta é seu pai, o presidente Bolsonaro, que foi preso por um processo do qual nem faz parte, este talvez o elemento mais surreal de toda a situação. Mais uma vez, a individualização das condutas some do mapa. O processo penal, que deveria ser o espaço da precisão e da responsabilidade pessoal, virou depósito de culpas coletivas.

A distância das embaixadas e o enredo improvável. O outro ponto da decisão é a suposta facilidade de fuga por causa da proximidade do condomínio com embaixadas estrangeiras. Esse tipo de argumentação parece saída de novela das oito. Não há, em país nenhum, uma doutrina que transforme proximidade geográfica em risco concreto de fuga internacional. É pura imaginação judicial sendo tratada como prova. 

Processo e a interpretação Epistemológica

A fundamentação utilizada para justificar a prisão preventiva apresenta vícios graves do ponto de vista epistemológico, que bem elucidou o STJ no julgamento do Recurso Ordinário em Habeas Corpus (RHC) 167.478/MS[ii], e se refere à análise da capacidade de uma prova gerar conhecimento confiável sobre os fatos, contribuindo, assim, para o acertamento do enunciado fático alegado no processo e diminuindo as chances de um erro judiciário, de modo que buscam restringir o ingresso de elementos de provas que, embora pertinentes e/ou relevantes, poderiam gerar uma inexata reconstrução histórica dos fatos.

Neste caso não se convalidou a prova processual, não houve contraditório prévio, nem perícia técnica sobre possível violação de tornozeleira eletrônica, que poderia ser falha sistêmica e não tentativa deliberada de fuga. A prevenção mencionada contrafuga se baseia em analogias com casos diversos e conjecturas sobre as convocações de apoiadores, sem provas objetivas. O uso da distância física para embaixadas estrangeiras é descrito como indício para fuga, contrariando a individualização exigida na relação entre fato e pessoa presa.

A execução da medida cautelar se embasa em interpretação extensiva do risco à ordem pública e à aplicação da lei penal, utilizando notícias de convocação para vigília religiosa, postagens em redes sociais e a menção à “organização criminosa” como elementos caracterizadores do periculum libertatis, sem exame técnico ou contraditório.

Prisão é cerceamento do segundo maior bem que o ser humano possui depois da vida. Não é um capricho. Não é um instrumento político. Não é um mecanismo de pressão. É medida extrema e excepcional.

E aqui ela foi usada como se fosse simples ajuste administrativo. A prisão domiciliar já existia e era plenamente suficiente. Tratava-se de prisão preventiva, legal, válida, ajustada. Quando a medida menor resolve, a maior se torna abusiva. 

Considerações Finais

Torna-se patente, pelo exposto, que a decisão do STF, ao converter prisão domiciliar e cautelares diversas em prisão preventiva, assenta-se fortemente na interpretação extensiva dos riscos e suposições sobre a fuga, em detrimento de prova técnica e contraditório efetivo.

A espetacularização judicial e o protagonismo singular, somados à utilização de analogias e justificativas midiáticas, conferem a este processo uma feição autoritária, destoante dos valores do processo penal democrático e das garantias constitucionais, uma verdadeira encruzilhada moral e jurídica: ou seguir a lei ou aplaudir o arbítrio.

Aqui está a verdade crua. Ou você defende o devido processo legal, com todas as garantias que a Constituição trouxe, ou você aplaude a prisão porque não gosta do réu. Não dá para ficar com as duas coisas ao mesmo tempo. Quem apoia prisão sem prova amanhã não terá condições para reclamar quando for vítima dela.

São nesses momentos que as democracias se testam. Quando o processo deixa de servir para proteger e passa a ser ferramenta para punir antes da hora, o país escorrega para uma zona perigosa. Não é questão de gostar ou não de Bolsonaro. É questão de respeitar a lei. Porque, sem a lei, todos nós viramos reféns.

Não é de hoje que o Brasil vive hoje um autoritarismo que não precisa de armas. Precisa apenas de caneta, despacho urgente, madrugada silenciosa e silêncio institucional dos que deveriam conter excessos. O episódio da prisão preventiva do presidente Jair Bolsonaro mostra de forma cristalina o quanto a justiça brasileira passou a operar de forma seletiva e mais pelo espetáculo do que pelo direito.

Um país que aceita isso calado renuncia à própria liberdade. Um país que não cobra o devido processo legal prepara o terreno para que qualquer um seja o próximo.

E é assim, nessa encruzilhada de narrativa e poder, que a democracia vai sendo empurrada para outro modelo. Um modelo em que a toga fala alto demais e a Constituição fala baixo demais.

 

 



[1] Temístocles Telmo: Doutor e Mestre em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública. Pós-Graduado lato senso em Direito Penal. Coronel veterano da Polícia Militar do Estado de São Paulo. Com 38 anos de experiência de atuação na Segurança Pública. Professor de Direito Criminal na PUC-Assunção. Advogado e membro da Comissão de Segurança Pública da 100ª Subseção do Ipiranga da OAB São Paulo. Em 2023, coordenou os Conselhos Comunitários de Segurança da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo e foi Secretário de Segurança de Santo André (2024-2025). É autor, coautor e organizador de 16 livros, com destaque para Vizinhança Solidária. Além de escritor e articulista, também se dedica à poesia.



[i] Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2025/10/27/collor-diz-ao-stf-que-tornozeleira-ficou-36-horas-desligada-porque-bateria-acabou-e-ele-nao-viu.htm?cmpid=copiaecola

[ii] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Ordinário em Habeas Corpus n° 167478/MG,  6ª Turma, relator: ministro Rogério Schietti, DJ: 21/10/2025. Disponível em:  https://www.stj.jus.br/sites/portalp/paginas/comunicacao/noticias/2025/05112025-carta-psicografada-nao-pode-ser-usada-como-prova-judicial–decide-sexta-turma.aspx. Acesso em 08/11/2025

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