O Jeitinho que Desvirtua a Lei, a Lógica e Desautoriza a Polícia

 


 

 

Temístocles Telmo[1]

 

A 10ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, no julgamento da Apelação Criminal nº 1501506 41.2024.8.26.0536, 5 de novembro de 2025[i], manteve a absolvição do réu quanto ao crime de corrupção ativa. A decisão foi relatada pela desembargadora Maria de Lourdes Rachid Vaz de Almeida, com julgamento colegiado acompanhado pelos desembargadores Nelson Fonseca Júnior e Jucimara Esther de Lima Bueno.

A fundamentação central foi expressa de forma direta: “Não há corrupção ativa, mas mero pedido ou especulação sobre eventual jeitinho, que caracteriza a atipicidade da conduta, se o agente não é claro e direto ao oferecer ou prometer vantagem indevida, verbos do tipo penal do artigo 333 do Código Penal.”

Segundo a relatora, o réu indagou ao policial militar: “quanto você quer para não me prender?”. O juízo de primeiro grau considerou o fato atípico e o colegiado manteve essa linha de pensamento.

“A conduta equivale ao popularmente chamado jeitinho, pois o réu pergunta quanto o policial queria para não prender, ou seja, tem algum jeito, alguma possibilidade, sem efetivamente oferecer ou prometer a vantagem indevida.”

“A acusação é estéril sobre a real natureza da vantagem indevida a ser oferecida ou proposta.”

Além disso, o segundo policial presente na abordagem também afirmou não saber qual teria sido a vantagem supostamente oferecida.

Outros pontos do acórdão

O réu foi condenado apenas pelos crimes de tráfico de drogas, com aplicação do tráfico privilegiado, e resistência. A pena final incluía dois anos e seis meses de reclusão e dois meses de detenção, ambas em regime aberto. O Ministério Público também tentou afastar o tráfico privilegiado, mas o colegiado rejeitou a tese ao afirmar:

“O trazer consigo 185 invólucros contendo cocaína, isoladamente, não é suficiente para demonstrar dedicação à prática de crimes.”

 

O Código Penal dispõe no art. 333 o crime de Corrupção ativa, inserido CAPÍTULO II, DOS CRIMES PRATICADOS POR PARTICULAR CONTRA A ADMINISTRAÇÃO EM GERAL.

Art. 333 - Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 10.763, de 12.11.2003)

Parágrafo único - A pena é aumentada de um terço, se, em razão da vantagem ou promessa, o funcionário retarda ou omite ato de ofício, ou o pratica infringindo dever funcional.

 

A doutrina e jurisprudência consolidada é firme: o crime é formal e instantâneo, consumando-se no exato momento da oferta ou promessa, independentemente de resultado. Consoante o pacífico magistério doutrinário e jurisprudencial O crime de corrupção ativa é formal e instantâneo, consumando-se com a simples promessa ou oferta de vantagem indevida (CC 110304DF Relator(a) Ministro Napoleão Nunes Maia Filho Órgão Julgador S3 Data do Julgamento 28042010). Nestes termos, basta o simples oferecimento da promessa ao funcionário público com vistas à obtenção da vantagem indevida para subsunção da conduta aos termos do art. 333 do Código Penal. Por outro lado, alcançada a finalidade proposta pelo agente, impõe-se a aplicação da causa de aumento de pena (CP, art. 333, parágrafo único) (TJES, AC 024110263712, Rel. Des. Carlos Henrique Rios do Amaral, Julgamento: 25/6/2014)[ii].

Aqui está o ponto em que a lógica judicial se torce e abandona o chão duro da realidade policial. A decisão trata a tentativa de suborno como conversa de esquina, como especulação inocente, como se perguntar ao policial militar quanto ele quer para não cumprir a lei fosse costume linguístico.

E isso, além de descolar a aplicação da norma penal da doutrina tradicional, ainda zomba da atividade policial e da própria sociedade.

O policial militar vive a rua. Ele sabe quando alguém tenta comprá-lo. Não existe espontaneidade ingênua no ato de perguntar quanto custa não ser preso. Existe dolo, existe intenção, existe a clara tentativa de corromper o agente. A doutrina explica isso há décadas. A jurisprudência do STJ confirma. O art. 333 é crime formal. Consumou, acabou. O resto é conversa.

Quando o Judiciário chama isso de jeitinho, cria uma romantização do ilícito. O criminoso vira folclórico. O policial vira exagerado. A lei vira sugestão. E a autoridade estatal perde musculatura diante da esperteza do infrator.

É essa inversão que corrói o sistema. O jeitinho não é traço cultural inofensivo. É corrosão moral. É a tentativa de dobrar a lei pela conversa, pela malícia, pela compra. Tratar isso como atípico é rasgar o conceito jurídico de crime formal e é desautorizar o policial que se mantém firme diante da oferta espúria.

Há um Brasil que trabalha, patrulha, enfrenta a madrugada e a violência. Esse Brasil não vive de jeitinho. Vive de lei. Quem tenta comprar a lei com pergunta maliciosa já consumou o delito. O resto é poesia perigosa que só existe nos gabinetes.

 



[1] Temístocles Telmo: Doutor e Mestre em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública. Pós-Graduado lato senso em Direito Penal. Coronel veterano da Polícia Militar do Estado de São Paulo. Com 38 anos de experiência de atuação na Segurança Pública. Professor de Direito Criminal na PUC-Assunção. Advogado e membro da Comissão de Segurança Pública da 100ª Subseção do Ipiranga da OAB São Paulo. Em 2023, coordenou os Conselhos Comunitários de Segurança da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo e foi Secretário de Segurança de Santo André (2024-2025). É autor, coautor e organizador de 16 livros, com destaque para Vizinhança Solidária. Além de escritor e articulista, também se dedica à poesia.



[i] Disponível em: CONJUR. PEDIDO DE ‘JEITINHO’ PARA NÃO SER PRESO NÃO CARACTERIZA CORRUPÇÃO ATIVA. https://www.conjur.com.br/2025-nov-05/pedido-de-jeitinho-para-nao-ser-preso-nao-caracteriza-corrupcao-ativa/

[ii] Código Penal: comentado / Rogério Greco. – 11. ed. – Niterói, RJ: Impetus, 2017.

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