A gente vive um tempo estranho, quase uma encruzilhada
moral, onde o brilho mórbido da violência virou mercadoria fina nas prateleiras
das grandes plataformas. O mal virou entretenimento caro, enquanto o sacrifício
verdadeiro segue quieto, discreto, esquecido num canto.
O Brasil contemporâneo parece ter invertido o compasso da
própria consciência, trocando o valor de quem salva pelo lucro criado em cima
de quem destrói.
A glória torta do criminoso e a
suavidade da lei
O criminoso virou personagem famoso, não pelo que fez de
bom, mas pelo espetáculo que o mal rende. Somado a isso, a sensação popular de
que a legislação penal é suave alimenta a revolta de quem olha e não entende.
A Progressão de Regime, que está na Lei de Execução Penal,
sempre existiu para permitir que o condenado avance se cumprir a parte da pena
e apresentar bom comportamento. É legal, é previsto, mas no coração das pessoas
isso soa como injustiça quando comparado ao tamanho da tragédia que deixaram
para trás.
Os números falam por si, e todos eles estão corretos:
Suzane Richthofen, condenada a 39 anos e 11 meses pelo assassinato dos pais em 2002, alcançou o regime aberto em janeiro de 2023, depois de cerca de 20 anos.
Elize Matsunaga, condenada a 19 anos e 11 meses pelo homicídio e esquartejamento do marido em 2012, chegou ao regime aberto em maio de 2022, pouco mais de 10 anos.
O casal Nardoni, condenado pela morte de Isabella em 2008, também progrediu, Anna Carolina em 2023 e Alexandre em 2024, depois de aproximadamente 15 e 16 anos.
Tudo dentro da lei, tudo dentro das regras, mas nada disso
dentro da alma de quem ainda sofre.
A indústria da tragédia e o caso da série Tremembé
E como se não bastasse a progressão, o tempo apaga
cicatrizes na execução penal, mas reacende feridas na mídia. A série Tremembé
ressuscitou narrativas e sentimentos, jogando luz de novo sobre quem deveria
permanecer no esquecimento.
O debate que pega fogo está no dinheiro. Livros, séries,
direitos autorais, audiência. Tudo isso gera lucro e mais lucro. Ainda que os
mencionados criminosos não recebem dinheiro, por serem os protagonistas das
histórias de Tremembé.
E aí vem a pergunta que ninguém quer fazer em voz alta, mas
todos pensam:
a) Esse dinheiro não deveria ir para quem perdeu tudo nas
mãos desses mesmos criminosos? Para as famílias, que são as verdadeiras
condenadas perpetuamente?
b) Ou ao Estado, que arcou com todo o processo e
encarceramento?
Mas o espetáculo vence, porque o espetáculo sempre vence
quando não há bússola moral firme para segurar o rumo.
O heroísmo que ninguém filma, o silêncio que ninguém paga
Enquanto isso, o Brasil real segue cheio de gente que dá a
própria vida sem pedir nada em troca.
A professora Heley de Abreu Batista, em outubro de 2017, enfrentou um incêndio criminoso para salvar 25 crianças e morreu lutando. Não houve campanha de marketing, não houve série bilionária, não houve tapete vermelho.
Policiais, bombeiros, médicos, enfermeiros, que enfrentam tiro, fogo, vírus, dor, sem glamour, sem trilha sonora, sem cachê milionário. O herói de verdade não rende curtidas, porque o herói de verdade age em silêncio.
Em enchentes, desastres e tragédias naturais, os voluntários aparecem sozinhos, com seus próprios carros, barcos improvisados, dinheiro contado, coração enorme.
Eles salvam vidas enquanto a imprensa procura ângulos que vendam melhor a tragédia.
Esse heroísmo existe, respira, vive entre nós, mas quase
nunca chega ao topo dos catálogos das grandes plataformas.
Conclusão, a bússola moral precisa voltar a apontar para o norte
A verdade é simples, e como as verdades simples, dói. A
nossa cultura de massa está devorando o mal como espetáculo, enquanto o bem se
esvai em silêncio. A Justiça faz o que a lei manda, mas não entrega a sensação
de justiça que o povo espera.
A mídia dá palco a quem nunca mereceu palco, e fecha a
cortina para quem sustenta a humanidade deste país.
Está na hora de virar esse compasso, de puxar de volta o
valor do sacrifício, da dedicação, do serviço, da vida entregue pelos outros.
Que a memória de quem age em favor do coletivo seja maior, mais forte e mais
duradoura do que qualquer fama passageira do crime.
Porque o mal rende dinheiro, mas é o bem que sustenta a
civilização. E o Brasil precisa lembrar disso antes que esqueça de vez.
[1]
Temístocles Telmo: Doutor e Mestre em Ciências Policiais de Segurança e Ordem
Pública. Pós-Graduado lato senso em Direito Penal. Coronel veterano da Polícia
Militar do Estado de São Paulo. Com 38 anos de experiência de atuação na
Segurança Pública. Professor de Direito Criminal na PUC-Assunção. Advogado e
membro da Comissão de Segurança Pública da 100ª Subseção do Ipiranga da OAB São
Paulo. Em 2023, coordenou os Conselhos Comunitários de Segurança da Secretaria
de Segurança Pública do Estado de São Paulo e foi Secretário de Segurança de
Santo André (2024-2025). É autor, coautor e organizador de 16 livros, com
destaque para Vizinhança Solidária. Além de escritor e articulista, também se
dedica à poesia.

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