Temístocles
Telmo[1]
Os fatos
Desembargadora que soltou Vorcaro foi defendida pelo mesmo
advogado do banqueiro. Solange Salgado, do TRF-1, foi acusada de fraude em
2010 e teve o auxílio do escritório Bottini & Tamasauskas, o mesmo
escritório que representa Daniel Vorcaro, dono do Banco Master, defendeu a
desembargadora Solange Salgado, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região
(TRF-1), em uma acusação de fraude.
A magistrada foi responsável pela decisão que soltou o
executivo na sexta-feira 28. A apuração é do jornalista Felipe Moura Brasil . Em
meio ao processo, Solange foi defendida pelo escritório Bottini & Tamasauskas
Advogados, pertencente a Pierpaolo Cruz Bottini. Dois advogados do escritório,
incluindo o próprio Bottini, fazem parte da defesa de Vorcaro no caso da fraude
no Banco Master
O Código de Processo Penal sempre guardou com zelo a figura
do juiz imparcial. Essa imparcialidade representa a espinha dorsal do processo
penal. Sem ela, o direito vira ruído, disputa de poder, teatro mal ensaiado. As
regras de impedimento e suspeição são a guardiã dessa imparcialidade. São o
cuidado tradicional com o julgador que não deve ter sombra, dívida, ou laço que
incline ou desvie.
A imparcialidade do juiz é a materialização do próprio
princípio do Juiz Natural, em que aqueles que se socorrem do Poder Judiciário,
terão a garantia de serem julgados por um juiz com jurisdição, competente e
imparcial. Suspeição e Impedimento, são o próprio controle de competência,
exercido pelo juiz.
Por isso, que este artigo revisita essas previsões, analisa
seus limites, e encara o desconforto que surge quando a vida real apresenta
situações que passam raspando pela lei, mas que exigem resposta firme.
Estrutura legal do impedimento e da suspeição
O CPP organiza o tema em dois blocos distintos. De um lado,
o impedimento, nascido de situações objetivas. De outro, a suspeição,
sustentada em vínculos subjetivos entre o juiz e as partes.
No campo do impedimento, a lei trata de situações em que o
juiz não pode atuar, independentemente de sua vontade ou intenção. Por exemplo,
o juiz será impedido se seu cônjuge ou parente, consanguíneo ou afim, até
terceiro grau, atuar como defensor, membro do Ministério Público, autoridade
policial, auxiliar da justiça ou perito. Também se inclui a hipótese de ter
atuado anteriormente no processo, ou de ser parte interessada ou diretamente
envolvida no feito.
Suspeição. O instituto da Suspeição delimita as
hipóteses em que o magistrado fica impossibilitado de exercer sua função em
determinado processo, devido a vinculo subjetivo (relacionamento) com algumas
das partes, fato que compromete seu dever de imparcialidade. Por exemplo, é
considerado como suspeito o juiz que tem relação de proximidade com
participante da ação judicial sob sua jurisdição, seja por amizade ou
inimizade, por tê-las aconselhado, ser credor ou devedor das mesmas, for sócio
de empresa interessada no processo, dentre outras. As hipóteses de suspeição
estão previstas no artigo 254 do Código De processo Penal, bem como no artigo
145 do Código de Processo Civil.
Art. 254. O juiz
dar-se-á por suspeito, e, se não o fizer, poderá ser recusado por qualquer das
partes:
I - se for amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer
deles;
II - se ele, seu cônjuge, ascendente ou descendente,
estiver respondendo a processo por fato análogo, sobre cujo caráter criminoso
haja controvérsia;
III - se ele, seu cônjuge, ou parente, consangüíneo, ou
afim, até o terceiro grau, inclusive, sustentar demanda ou responder a processo
que tenha de ser julgado por qualquer das partes;
IV - se tiver aconselhado qualquer das partes;
V - se for credor ou devedor, tutor ou curador, de
qualquer das partes;
Vl - se for sócio, acionista ou administrador de
sociedade interessada no processo.
Impedimento. No instituto do Impedimento, a lei
relaciona expressamente os casos em que o magistrado fica impossibilitado de
atuar, independe de sua intenção no processo ou de sua relação com as partes. As
causas de impedimento também decorrem do dever de imparcialidade do juiz, mas
se referem à sua relação com o processo.
Cabe ressaltar que a hipótese de suspeição e impedimento são
aplicáveis também aos membros do Ministério Público; auxiliares da justiça (ex:
servidores, peritos ); e demais sujeitos imparciais do processo, como os
jurados.
Art. 252. O juiz
não poderá exercer jurisdição no processo em que:
I - tiver funcionado seu cônjuge ou parente, consangüíneo
ou afim, em linha reta ou colateral até o terceiro grau, inclusive, como
defensor ou advogado, órgão do Ministério Público, autoridade policial,
auxiliar da justiça ou perito;
II - ele próprio houver desempenhado qualquer dessas
funções ou servido como testemunha;
III - tiver funcionado como juiz de outra instância,
pronunciando-se, de fato ou de direito, sobre a questão;
IV - ele próprio
ou seu cônjuge ou parente, consanguíneo ou afim em linha reta ou colateral até
o terceiro grau, inclusive, for parte ou diretamente interessado no feito.
O artigo 255 complementa que, no caso de parentesco por
afinidade, o impedimento ou suspeição cessa com a dissolução do casamento que
lhe deu causa, salvo se houver descendentes; mas, ainda que dissolvido o
casamento sem descendentes, continuam vedadas as funções de juiz para sogro,
padrasto, cunhado, genro ou enteado da parte.
Art. 255. O
impedimento ou suspeição decorrente de parentesco por afinidade cessará pela
dissolução do casamento que Ihe tiver dado causa, salvo sobrevindo
descendentes; mas, ainda que dissolvido o casamento sem descendentes, não
funcionará como juiz o sogro, o padrasto, o cunhado, o genro ou enteado de quem
for parte no processo.
Por fim, o artigo 256 veda a declaração ou o reconhecimento
da suspeição quando a parte, de propósito, der motivo para criá-la, ou injuriar
o juiz.
O impedimento impõe a nulidade automática da jurisdição, o
juiz não pode julgar. Não se discute intenção, afeto, ou afinidade. A lei
impõe. A suspeição exige demonstração concreta de vínculo, risco de
parcialidade. É campo de ponderação, de análise, de prova.
Na prática, o impedimento protege
com mais força a imparcialidade, ainda que de modo rígido. A suspeição, apesar
de importante, traz consigo o risco da subjetividade, da argumentação
estratégica, da disputa interpretativa.
O problema vem quando a vida apresenta situações que a lei
não adere de forma clara. Relações profissionais anteriores. Escritórios que
defendem investigados ou denunciados. Advogados que um dia patrocinaram causas,
cujos clientes agora estão diante do juiz. Vínculos que não se confundem com
amizade íntima, nem com parentesco. Mas que podem gerar no fundo, nas veias da
justiça, um conflito de interesses sutil, profundo, invisível.
O texto do CPP não prevê explicitamente “vínculo
profissional anterior ou atuação advocatícia prévia” como causa automática de
impedimento ou de suspeição. As hipóteses objetivas não cobrem esse tipo de
relação. E as subjetivas, embora amplas, amizade, débito, sociedade, exigem
prova de proximidade ou interesse direto. Por isso mesmo, muitas situações
ficam em um limbo desconfortável: nada impede formalmente, mas tudo suscita
questionamentos legítimos.
Quando a norma foi escrita, 1941, os atores do sistema
talvez não imaginassem a teia que hoje compõe as relações de defesa, poder,
influência, banca, capital simbólico e econômico. A lei assenta sobre um mundo
mais simples. O mundo atual exige mais clareza, mais amplitude, normas que acompanhem
a complexidade.
Riscos para o processo penal e para a confiança pública
Quando o sistema jurídico não consegue lidar com esse palco
moderno de interesses cruzados, alimenta a sensação de privilégio. Aumenta a
percepção de que certas causas têm tratamento diferenciado, portões que se
abrem para quem conhece as chaves certas.
A justiça perde brilho. A impessoalidade real, requisito
essencial para credibilidade, se fragiliza.
A norma deveria ser escudo, ela filtra o óbvio, o
escancarado. Mas, diante dos vínculos sutis, ela age mais como peneira. Filtra
o grosso, deixa passar o tênue, muitas vezes invisível. E esse tênue, quando
transformado em decisão, pode ferir a legitimidade do processo.
Como sempre criticamos também a decisão do STF que invalidou
ampliação de impedimento de juízes, ao entender a corrente majoritária, que a
regra do novo CPC ofende o princípio da proporcionalidade.
O Supremo derrubou o inciso VIII do artigo 144 do CPC e, com
isso, abriu caminho para uma leitura mais enxuta do impedimento. A Corte
afirmou que a ampliação criada pelo novo Código era desproporcional, porque
exigia do magistrado o impossível, descobrir carteiras de clientes de
terceiros, e ainda permitia que as partes usassem a regra como manobra para
escolher julgadores.
Art. 144. Há
impedimento do juiz, sendo-lhe vedado exercer suas funções no processo:
[...]
VIII - em que figure como parte cliente do escritório de
advocacia de seu cônjuge, companheiro ou parente, consanguíneo ou afim, em
linha reta ou colateral, até o terceiro grau, inclusive, mesmo que patrocinado
por advogado de outro escritório; (Vide
ADI 5953)
No voto condutor, Gilmar Mendes lembrou que a imparcialidade
já está resguardada pelo artigo 144, inciso III, que trata da atuação direta de
parente até o terceiro grau no processo. E destacou algo decisivo, o parágrafo
terceiro do mesmo artigo continua valendo, mas ele só trata do impedimento
quando o parente do juiz for membro de escritório que tenha mandato naquele
caso específico. Fora disso, não há impedimento. A decisão do STF deixa
cristalino que o simples fato de o parente trabalhar no mesmo escritório não
afasta o magistrado, basta que o parente não esteja ligado ao mandato discutido
no processo.
A maioria, composta por Dias Toffoli, Luiz Fux, Alexandre de
Moraes, Nunes Marques, André Mendonça e Cristiano Zanin, acompanhou essa linha.
Ficaram vencidos Fachin, Barroso, Rosa Weber e Cármen Lúcia.
Resultado, na ADI 5953, o STF declarou inconstitucional a
ampliação do impedimento. E manteve a tradição, a de que o juiz só se afasta
quando há vínculo real com o caso, não quando há parentesco distante no mesmo
escritório sem relação com a causa. Uma volta à objetividade que dá ao processo
a serenidade que nunca deveria ter sido perturbada.
Assim, repetimos, discordamos inclusive da justificativa do
voto do ministro condutor: “...porque exigia do magistrado o impossível,
descobrir carteiras de clientes de terceiros...”. Não se trata do magistrado e
qualquer advogado. Mas sim do magistrado e seu cônjuge.
Conclusão crítica
O CPP cumpre, em grande medida, sua missão histórica. Define
com clareza o impedimento. Estrutura a suspeição. Preserva a tradição da
neutralidade judicial. Essas bases são fundamentais, representam o patamar
mínimo de justiça.
Mas a lei já não responde com firmeza a determinadas
situações modernas, sobretudo quando envolvem relações profissionais pregressas
entre magistrados e advogados que atuam em causas sensíveis. A letra da lei
permanece, a vida avança. A jurisprudência, a ética, a percepção social
pressionam por maior amplitude.
O processo penal exige que a imparcialidade não seja apenas
real, mas visível, transparente, incontestável. Até que se avance arduamente
nesse caminho, seguirá existindo terreno nebuloso, onde tudo é permitido pela
lei, mas nem tudo é prudente.
E o processo penal, que já é frágil por natureza, perde
parte de seu vigor, de sua credibilidade, de seu dever ancestral de justiça
verdadeira.
Referências
RACHEL DIAZ - OESTE.
2025. Desembargadora que soltou
Vorcaro. OESTE. [Online] OESTE, 01 de DEZEMBRO de 2025. [Citado em: 02
de DEZEMBRO de 2025.]
https://revistaoeste.com/politica/desembargadora-que-soltou-vorcaro-foi-defendida-pelo-mesmo-advogado-que-o-banqueiro/.
STF. 2023. STF invalida ampliação de impedimento de juízes. STF.
[Online] STF, 21 de AGOSTO de 2023. [Citado em: 02 de DEZEMBRO de 2025.]
https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=512602&ori=1.
TJDFT. 2021. Suspeição X Impedimento. Tribunal de Justiça do
Distrito Federal e dos Territórios. [Online] Tribunal de Justiça do
Distrito Federal e dos Territórios, 26 de MARÇO de 2021. [Citado em: 02 de
DEZEMBRO de 2025.]
https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/campanhas-e-produtos/direito-facil/edicao-semanal/suspeicao-x-impedimento?utm_source=chatgpt.com.
[1]
Temístocles Telmo: Doutor e Mestre em Ciências Policiais de Segurança e Ordem
Pública. Pós-Graduado lato senso em Direito Penal. Coronel veterano da Polícia
Militar do Estado de São Paulo. Com 38 anos de experiência de atuação na
Segurança Pública. Professor de Direito Criminal na PUC-Assunção. Advogado e
membro da Comissão de Segurança Pública da 100ª Subseção do Ipiranga da OAB São
Paulo. Em 2023, coordenou os Conselhos Comunitários de Segurança da Secretaria
de Segurança Pública do Estado de São Paulo e foi Secretário de Segurança de
Santo André (2024-2025). É autor, coautor e organizador de 16 livros, com
destaque para Vizinhança Solidária. Além de escritor e articulista, também se
dedica à poesia.

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